A História da Igreja, diferentemente de outros objetos de
estudo, requer para sua compreensão plena um esforço prévio. Isso ocorre devido
à natureza complexa da Igreja. Ela não é meramente uma instituição humana, que
pode ser entendida somente no âmbito humano. Não é uma agremiação, um grupo de
pessoas unidas em sociedade com um fim específico. Não. A Igreja é um mistério
e, se este for perdido de vista, a história que dele deriva será apenas uma
caricatura.
Para ilustrar, um fato histórico: a conversão de um homem
chamado Saulo de Tarso, o qual nasceu na atual Turquia, no sopé do monte
Taulus, perto do Mar Mediterrâneo. Saulo foi educado na cidade de Tarso, dentro
da cultura helenística, mas ao mesmo tempo judaica. Sendo seus pais judeus
devotos foi levado até Jerusalém para estudar na escola de Gamaliel. Saulo
percebeu que estava acontecendo algo estranho no judaísmo de sua época: um
homem chamado Jesus de Nazaré.
Quando alguém se refere a Jesus, mesmo quem não tem fé,
normalmente o faz de maneira respeitosa, reconhecendo nele alguém
"iluminado", um "sábio". Contudo, só pode considerar Jesus
como um "sábio" aquele que Nele tem fé. Isso se explica porque Jesus,
em sua vida histórica, reivindicou para si o título de "Filho de
Deus", por si só escandaloso. E assim é em todo o Evangelho. Um exemplo
desse escândalo é o Sermão da Montanha, uma obra literária admirada até mesmo
por quem não tem fé, no qual Ele diz: "ouvistes o que foi dito... eu, porém,
vos digo..." (conf. Mt 5,21-22). Contextualizando as palavras de Jesus é
possível perceber que, de alguma forma, Ele reformula o que está no Antigo
Testamento, esclarecendo a Palavra de Deus, com uma autoridade divina.
Para os homens daquela época, ouvir Jesus dizer: "Eu
sou o caminho, a verdade e a vida", não deve ter sido nada fácil. Uma
atitude possível seria crer que Jesus realmente era Deus feito homem. A outra
era acreditar que Jesus nada mais era que um louco. Por isso, desde o seu
nascimento, Jesus de Nazaré foi uma figura polêmica. Os homens que acreditaram
em Jesus possuíam fé. Ainda hoje, para crer que Jesus é Deus é necessário fé.
Ora, Saulo de Tarso percebeu o que estava acontecendo em sua
época. Ele era um judeu devoto e não podia acreditar que aquele homem que
morrera crucificado em Jerusalém fosse Deus. Para ele era impossível que Deus
se fizesse homem, morresse numa cruz, ressuscitasse no terceiro dia e subisse
aos céus. Era impossível. Assim, restou a segunda alternativa e Saulo passou a
perseguir os cristãos.
Tendo em seu poder cartas de autorização do Sinédrio, em
Jerusalém, Saulo percorreu diversas cidades, chegando à Síria - cuja capital
até hoje é Damasco -, pois sabia que nessa cidade havia uma comunidade de
cristãos. Com o mandado judicial nas mãos, passou a prendê-los, pois os
considerava um grupo de judeus fanáticos e perigosos, que seguiam um louco,
blasfemo e, portanto, eram também blasfemos. Com essa perseguição, Saulo cumpre
a Palavra proferida por Jesus Cristo: "Expulsar-vos-ão das sinagogas, e
virá a hora em que todo aquele que vos tirar a vida julgará prestar culto a
Deus."(conf. Jo 16,2).
O que aconteceu a Saulo se encontra narrado no livro dos
Atos dos Apóstolos, capítulo 9 e vale recordar:
"Saulo só respirava ameaças e morte contra os
discípulos do Senhor. Ele apresentou-se ao sumo sacerdote, e lhe pediu cartas
de recomendação para as sinagogas de Damasco, a fim de levar presos para
Jerusalém todos os homens e mulheres que encontrasse seguindo o Caminho.
Durante a viagem, quando já estava perto de Damasco, Saulo se viu
repentinamente cercado por uma luz que vinha do céu. Caiu por terra, e ouviu
uma voz que lhe dizia: "Saulo, Saulo, por que você me persegue?" Saulo perguntou:
"Quem és tu, Senhor?" A voz respondeu: "Eu sou Jesus, a quem
você está perseguindo.
Agora, levante-se, entre na cidade, e aí dirão o que você deve fazer." Os homens
que acompanhavam Saulo ficaram cheios de espanto, porque ouviam a voz, mas não
viam ninguém. Saulo se levantou do chão e abriu os olhos, mas não conseguia ver
nada. Então o pegaram pela mão e o levaram para Damasco. E Saulo ficou três
dias sem poder ver, e não comeu nem bebeu nada. Em Damasco havia um discípulo
chamado Ananias. O Senhor o chamou numa visão: "Ananias!" E Ananias
respondeu: "Aqui estou, Senhor!" E o Senhor disse: "Prepare-se,
e vá até a rua que se chama rua Direita e procure, na casa de Judas, um homem
chamado Saulo, apelidado Saulo de Tarso. Ele está rezando e acaba de ter uma
visão. De fato, ele viu um homem chamado Ananias impondo-lhe as mãos para que recuperasse a
vista."
Ananias respondeu: "Senhor, já ouvi muita gente falar
desse homem e do mal que ele fez aos teus fiéis em Jerusalém. E aqui em Damasco
ele tem plenos poderes, que recebeu dos chefes dos sacerdotes, para prender
todos os que invocam o teu nome." Mas o Senhor disse a Ananias: "Vá,
porque esse homem é um instrumento que eu escolhi para anunciar o meu nome aos
pagãos, aos reis e ao povo de Israel. Eu vou mostrar a Saulo quanto ele deve
sofrer por causa do meu nome." Então Ananias saiu, entrou na casa e impôs
as mãos sobre Saulo, dizendo: "Saulo, meu irmão, o Senhor Jesus, que lhe
apareceu quando você vinha pelo caminho, me mandou aqui para que você recupere
a vista e fique cheio do Espírito Santo." Imediatamente caiu dos olhos de
Saulo alguma coisa parecida com escamas, e ele recuperou a vista.
Em seguida Saulo se levantou e foi batizado. Logo depois
comeu e ficou forte como antes. Saulo passou então alguns dias com os
discípulos em Damasco. E logo começou a pregar nas sinagogas, afirmando que
Jesus é o Filho de Deus. Os ouvintes ficavam impressionados e comentavam:
"Não é este o homem que descarregava em Jerusalém a sua fúria contra os
que invocam o nome de Jesus? E não é ele que veio aqui justamente para os
prender e levar aos chefes dos sacerdotes?" No entanto, Saulo se
fortalecia cada vez mais e deixava confusos os judeus que moravam em Damasco,
demonstrando que Jesus é o Messias." (1-22)
O trecho em negrito é o prenúncio de uma revolução, pois o
homem que estava convicto de que fazia bem em perseguir os discípulos de Jesus,
de repente vê-se frente a frente com o próprio Jesus, ressuscitado, como luz
que ilumina a sua vida, tão forte que lhe provoca uma cegueira. Nesse ponto é
preciso parar e analisar o que de fato aconteceu.
A conversão de Saulo não foi algo que se deu de maneira
isolada, individual, em que ele sozinho teve um contato com Jesus. Não. Ela foi
eclesial desde o início. Ora, para Saulo, Jesus estava morto e sepultado, sua
ressurreição era nada mais que um engodo perpetrado pelos seus discípulos, aos
quais Saulo perseguia concretamente. No caminho de Damasco, uma luz atinge
Saulo e ele escuta uma voz que diz: "Saulo, Saulo, por que Me
persegues?". O que Saulo perseguia, então, era a Igreja. Nesse momento há
uma revolução eclesiológica, pois, diante da conversão de Saulo é possível dizer
que a Igreja é uma continuidade de Jesus na história. A continuação histórica
do mistério da Encarnação. É que São Paulo tenta explicar na Primeira Carta aos
Coríntios, utilizando, no Capítulo 11, uma analogia para se referir à
Eucaristia. Ele diz:
"De fato, eu recebi pessoalmente do Senhor aquilo que
transmiti para vocês. Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão
e, depois de dar graças, o partiu e disse: "Isto é o meu corpo que é para
vocês; façam isto em memória de mim."Do mesmo modo, após a Ceia, tomou
também o cálice, dizendo: "Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue;
Todas as vezes que vocês beberem dele, façam isso em memória de mim."
(23-25)
No Capítulo seguinte, ele continua a falar do Corpo de
Cristo, porém, agora se refere a ele como sendo composto por todos os homens:
"De fato, o corpo é um só, mas tem muitos membros; e no
entanto, apesar de serem muitos, todos os membros do corpo formam um só corpo.
Assim acontece também com Cristo. Pois todos fomos batizados num só Espírito
para sermos um só corpo, quer sejamos judeus ou gregos, quer escravos ou
livres. E todos bebemos de um só Espírito.
O corpo não é feito de um só membro, mas de muitos. Se o pé
diz: "Eu não sou mão; logo, não pertenço ao corpo", nem por isso
deixa de fazer parte do corpo. E se o ouvido diz: "Eu não sou olho; logo,
não pertenço ao corpo", nem por isso deixa de fazer parte do corpo. Se o
corpo inteiro fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo ele fosse ouvido, onde
estaria o olfato? Deus é quem dispôs cada um dos membros no corpo, segundo a
sua vontade. Se o conjunto fosse um só membro, onde estaria o corpo? Há,
portanto, muitos membros, mas um só corpo. O olho não pode dizer à mão:
"Não preciso de você"; e a cabeça não pode dizer aos pés: "Não
preciso de vocês."
Os membros do corpo que parecem mais fracos são os mais
necessários; e aqueles membros do corpo que parecem menos dignos de honra são
os que cercamos de maior honra; e os nossos membros que são menos decentes, nós
os tratamos com maior decência; os que são decentes não precisam desses
cuidados. Deus dispôs o corpo de modo a conceder maior honra ao que é menos
nobre, a fim de que não haja divisão no corpo, mas os membros tenham igual
cuidado uns para com os outros. Se um membro sofre, todos os membros participam
do seu sofrimento; se um membro é honrado, todos os membros participam de sua
alegria. Ora, vocês são o corpo de Cristo e são membros dele, cada um no seu
lugar." (12-27)
As palavras de São Paulo são claras no sentido de que no
Corpo de Cristo (Eucaristia e Igreja) está presente o mistério da Encarnação.
Se uma hóstia consagrada for levada ao laboratório e analisada, nada se verá
além de pão. Não se verá o corpo de Cristo, não se verá Jesus. Para se enxergar
Jesus na Eucaristia é preciso ter fé. Deus permitiu, ao longo da história,
inúmeros milagres, sinais visíveis de que Jesus realmente está presente na
Eucaristia. Mas Ele está presente também na Igreja e São Paulo experimentou
essa verdade (por que me persegues?).
Da mesma forma que não é possível levar a hóstia para o
laboratório e enxergar Jesus, não é possível levar a Igreja para um estudo
sociológico e querer enxergá-Lo. É preciso ter fé em ambos os casos. Se o
propósito é estudar a História da Igreja, necessário se faz saber que o objeto
desse estudo será nada mais, nada menos que o Cristo vivo ao longo da história
na sua Igreja.
O modo correto de se chegar à verdadeira história da Igreja
é estudando a vida dos santos, homens e mulheres que historicamente viveram a
santidade (que chegaram a um estado de perfeição), cada um à sua maneira, vez
que existem diferentes graus de pertença à Igreja, de configuração a Cristo.
Para entender a história da Igreja é preciso conhecer a vida desses santos e o
modo como se entregaram a Deus.
Um bom exemplo é a vida de São Pio de Pietrelcina, que
configurou-se tão intensamente a Deus que as chagas de Cristo apareceram em
suas mãos, pés e costas, cuja vida toda foi marcada intensamente por fenômenos
inexplicáveis, verdadeiros milagres. Um santo atual, falecido em 1968, e que
teve seus milagres e feitos analisados pela ciência moderna. São radiografias,
estudos médicos, atestados, comprovações de verdadeiros portentos realizados
por meio desse homem santo. Não foram apenas intervenções ligadas aos carismas,
mas à própria santidade dele (bilocação, estigmas que não cicatrizaram durante
cinquenta anos e que poucos dias antes de sua morte fecharam-se
inexplicavelmente e não deixaram nenhum sinal, entre muitos outros).
O núcleo da história da Igreja está na vida dos santos, no
fato de Cristo viver nesses homens, os quais são a continuação da Sua
Encarnação. Porém, não se deve estudar sem fé, pois isso é perder de vista o
objeto a ser estudado. É preciso ter fé na Igreja de Cristo, só assim é
possível estudar essa história fascinante de Cristo Encarnado ao longo da
história da Humanidade.
Fonte: https://padrepauloricardo.org
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