é contestada hoje em dia em nome de correntes da ciência, da filosofia e
até da Teologia, alegam que não conhecemos
suficientemente as forças e as leis da natureza para poder
dizer que determinado fenômeno supera as leis da natureza e só se explica pela intervenção de Deus.
Respondemos que o milagre não consiste essencialmente em ser portento absolutamente inexplicável pela ciência; mas, antes do mais, o milagre é um sinal de
Deus para os homens, que Lhe pedem uma
expressão de seu amor ou sua bondade. Para que haja tal sinal, basta que o fato seja totalmente inexplicável pela ciência contemporânea ao fenômeno e
que se tenha produzido em contexto digno de
Deus ou como resposta de Deus à prece humilde e confiante
dos homens. Fora esse contexto religioso não se pode
falar de milagre, haverá então um fenômeno paranormal ou coisa semelhante.
O cristão não crê necessariamente por causa de milagres, mas, sim, por uma atração
íntima de Deus sobre o coração da criatura
(cf. Jo 6,44); essa atração não tira a liberdade do homem. Por isto, a fim de que
creia inteligentemente e não de maneira cega, o cristão é apoiado por credenciais das verdades da fé; entre essas credenciais está certamente
o milagre… milagre que há de ser
criteriosamente examinado e peneirado por peritos, a fim de que
não se identifique um fenômeno parapsicológico ou meramente natural com
uma intervenção significativa de Deus.
Em nossos dias verifica-se um certo ceticismo em relação aos milagres. As razões
disso parecem ser duas:
1) a ciência, progredindo,
tem mostrado que muitos fatos, outrora inexplicáveis, hoje são plenamente compreensíveis aos estudiosos (principalmente a
psicologia e a parapsicologia têm contribuído para
isso);
2) houve, e ainda há, no ser humano um
gosto, consciente ou não consciente, pelo maravilhoso, de modo
que facilmente se inventaram estórias portentosas e se
admitem intervenções extraordinárias do além no curso ordinário da história. Daí as sérias reservas que muitos
fazem no tocante aos milagres. Assim, por exemplo, um “biógrafo” de Jesus, chamado M. Cravieri, escreveu: “Não vem ao caso nem mesmo discutir a credibilidade dos milagres” (Un uomo chiamato Gesù), Teti, Milão 1993,
p. 45). De antemão, os milagres
são descartados como algo de lendário.
Ora, o Evangelho narra milagres de Jesus. E até hoje a Igreja,
seguindo uma tradição ininterrupta, admite a possibilidade de milagre, a tal ponto que, para proceder à Beatificação e à Canonização
de uma pessoa santa, a Igreja espera que Deus
realize algum milagre por intercessão desse seu Servo ou
dessa sua Serva (como se compreende, trata-se de milagres rigorosamente examinados por cientistas e teólogos).
Diante desta problemática, consideraremos a questão básica: pode haver milagre?
As histórias maravilhosas que se narram, contêm algo mais do
que lendas fantasiosas? Começaremos expondo.
O HISTÓRICO DA QUESTÃO
Até o século XVI pode-se dizer que era tranquila a aceitação de milagres como intervenções extraordinárias de Deus no curso da natureza. A partir do
século XVI, porém, o racionalismo vem afirmando que o
milagre é impossível e absurdo, pois seria contrário às leis da natureza, que o próprio Deus estabeleceu e que Ele não pode
violar sem contradizer à sua Sabedoria.
Assim, Baruch Spinoza (+ 1677), judeu de mentalidade panteísta, dizia que as
leis da natureza são decretos de Deus, emanados
da necessidade e da perfeição da natureza divina. Qualquer violação dessas leis seria violação da natureza do próprio Deus – o que é absurdo
(cf. Tractatus theologico-politicus, c. VI: De
Miraculis). O que chamamos milagre, seria apenas algo que
ultrapassa os nossos conhecimentos ou algo que julgamos ultrapassá-los. É a nossa ignorância que nos leva a falar de
milagre.
Também Pierre Bayle (+ 1706), um dos mestres do racionalismo moderno, dizia que
nada é mais digno da grandeza de Deus do que
manter as leis que Ele instituiu, e nada é mais indigno do que
crer que Ele intervém para derrogar a essas leis.
No século XVIII, semelhantes ideias foram propostas por David Hume (+ 1776) e
François Voltaire (+ 1778). Este afirma que o milagre é uma derrogação das leis matemáticas divinas, imutáveis,
eternas; por isso, o próprio conceito de milagre
seria contraditório (dictionnairePhilosophique, vol. 6, verbete Miracles); por
isso, crer em milagres seria dar prova de imbecilidade: “Imaginar que
Deus faça milagres em favor dos homens – formigas e lama – é
insultar a Deus. Donde crer em milagres é absurdo;
equivale, de certo modo, a desonrar a Deus”.
No século XIX, a recusa de milagres tentava apoiar-se na ciência. Esta ensinava
que o universo é um sistema fechado em si, ao qual nada de fora
pode sobrevir. Por isso, tudo o que acontece no universo deve ter uma explicação natural. Se esta não é perceptível, confessemos
que não conhecemos as infinitas possibilidade
da natureza. O que hoje não é explicável, será elucidado no futuro. Ademais, o universo é regido pelo determinismo:
“As condições necessárias para que se realize algum fenômeno são precisas e intocáveis. Negar este princípio eqüivale a
negar a própria ciência” (Claude Bernard).
Daí dizer Ernest Renan: “Os milagres são coisas que nunca acontecem. Somente os
crédulos simplórios os vêem; não se pode citar um único milagre
realizado diante de testemunhas que o pudessem averiguar… Por isto,
quem admite o sobrenatural, está fora do âmbito da ciência” (Vie de Jésus,
Paris, Lévy, 1863).
No século XIX, ainda G. Séailles, apelando para o determinismo científico,
afirmava que “por seus princípios e suas conclusões,
a ciência elimina o milagre” (Les affirmations de la Science Moderne, Paris 1909, p. 32).
Aliás, os próprios estudiosos da Bíblia protestante, impregnada de racionalismo, puseram-se a negar os milagres. O mais famoso nesta linha
foi Rudolf Bultmann (+ 1976): tinha os milagres na conta de mitos ou de expressões da mentalidade simplória e infantil dos antigos;
seriam relatos totalmente incompreensíveis ao
homem moderno: “Não se pode utilizar luz elétrica e os
aparelhos de rádio e, ao mesmo tempo, crer no mundo dos espíritos e nos milagres do Novo Testamento. Quem julga que o pode,
torna a mensagem cristã incompreensível e impossível para o nosso tempo” (L’interprétation du Nouveau Testament, Paris 1955, p.
143). – O milagre seria, pois, anticientífico e
inconcebível. Se a S. Escritura os descreve, quer ela unicamente dizer-nos que Deus se revela ao homem. “Deus se revela dando perdão aos pecadores” (Zur Frage des Wunders, em Glauben und Versthehen, vol.
I, Tubingen 1933, p. 221).
Enquanto a filosofia racionalista procurava remover o conceito de milagre, os pesquisadores da história das Religiões, a seu modo, contribuíram para
esvaziar também eles a noção de milagre.
AS RELIGIÕES COMPARADAS
Os pesquisadores têm posto em relevo os relatos de curas maravilhosas
obtidas nos santuários pagãos de antiguidade e
querem assemelhar as narrações do Evangelho a tais relatos.
Assim, nos santuários gregos de Asclépio e Epidauro, quatro lápides do século IV
a.C., referem oitenta portentos (geralmente
curas), realizados durante a noite enquanto os devotos
dormiam no santuário da Divindade: sonhavam com o deus Asclépio, que intervinha efetuando uma operação cirúrgica; depois de
acordar, recebiam do deus-médico uma
recomendação a seguir para manter a saúde. – Entre os muitos casos de “cura”,
narra-se o de Aristágora: sofria de vermes nos
intestinos; foi então passar a noite num templo de Asclépio e
sonhou: Asclépio estava ausente, pois fora a Epidauro, mas os seus filhos, querendo curá-la, cortaram-lhe a cabeça; não conseguindo
repor a cabeça da paciente no seu lugar,
enviaram uma mensagem a Asclépio, pedindo-lhe que
voltasse. Entrementes, fez-se dia, e o sacerdote de plantão
viu a cabeça longe do busto de Aristágora. Na noite seguinte, porém, a paciente teve uma visão: parecia-lhe que Asclépio, tendo voltado de
Epidauro, lhe recolocava a cabeça no lugar;
depois disso, abriu o ventre de Aristágora e extraiu-lhe os
vermes; costurou-lhe, a seguir, a barriga. Em consequência, Aristágora ficou
curada (cf. E. de Places, La Religion Grecque, Paris 1969, p. 237).
A simploriedade desta e de outras narrativas de milagres atribuídos aos
deuses pagãos, é aduzida pelos historiadores
para desacreditar os milagres de Jesus Cristo.
Também se apontam os portentos atribuídos a filósofos taumaturgos da antigüidade,
entre os quais Apolônio de Tiana, do século I
d. C. A sua biografia foi redigida por Filostrato, em 271 aproximadamente;
o biógrafo refere cerca de cinte milagres de Apolônio:
ressurreição de um morto, cura de um homem vítima de obsessão; cessação de peste em Éfeso, sendo que Apolônio revelou o demônio que
causava amoléstia e o mandou apedrejar; o corpo do maligno ter-se-á elevado
dois côvados acima do solo. Apolônio transferiu-se instantemente de Esmirra para Éfeso, encontrando o mar muito calmo,
apesar da estação turbulenta; o taumaturgo
denunciou uma espécie de vampiro feminino chamado Empusa e acalmou um sátiro
(outra espécie de mau espírito) apaixonado; conseguiu romper a
corrente que prendia uma de suas pernas no cárcere e fez que as portas de um templo se abrissem para deixá-lo passar. – Ora, M.
Craveri julga que tais milagres de Apolônio de
Tiana se assemelham extraordinariamente aos de Jesus (cf. Un
uomo chiamato Gesù, p. 46); tal conclusão é evidentemente forçada, visto que os milagres de Jesus no Evangelho são narrados com sobriedade, evitando-se expressões e cenas fantasiosas.
CATÓLICOS OBJETAM CONTRA OS MILAGRES
Não somente os racionalistas, mas também estudiosos católicos fazem reservas aos
milagres e, se não os negam frontalmente,
preferem ignorá-los. Apóiam-se principalmente nos resultados da ciência contemporânea. Precisamente a ciência em nossos
dias reconhece que lhe escapam as leis da natureza; estas estão sempre sujeitas a revisão e reformulação; como então se pode dizer
que acontecem fatos não conformes às leis
da natureza ou milagrosos? A ciência tem por tendência fundamental procurar a explicação natural dos fatos extraordinários, tornando
ordinário o extraordinário. Por conseguinte, a ciência não reconhece o milagre como superação das leis da natureza (tão obscuramente conhecida pelos pesquisadores).
Também em nome da fé, há católicos que recusam os milagres, tidos como
intervenções no curso natural das coisas. Perguntam:
se Deus age arbitrariamente usando o seu poder, que é feito da liberdade e da responsabilidade do homem? E, se Deus assim procede por
bondade, por que não o faz sempre? O maravilhoso é sempre uma exceção… e uma exceção decorrente dos caprichos de Deus, tira ao homem o domínio do
mundo, que os cientistas procuram adquiri mediante
o seu estudo. A autêntica ação divina no mundo deveria confirmar e aperfeiçoar a
natureza, nunca a suspender.
Em suma, dizem: caso se possa constatar algum fato portentoso, há de ser
considerado manifestação de forças naturais ainda
não conhecidas e dominadas pelo homem. O número de milagres tem diminuído com o progresso das ciências e tende a extinguir-se.
A RESPOSTA DA TEOLOGIA CATÓLICA
Distinguiremos três pontos:
O milagre-sinal
A Teologia Católica reconhece que não penetramos a fundo a natureza e suas leis
para poder dizer que tal ou tal fato viola
peremptoriamente as leis da natureza. Todavia, é de notar que o essencial do milagre não é superar as leis da natureza; não é oferecer um show da Onipotência Divina, embora este aspecto seja o que mais ocorre ao
público quando se fala de milagre. O essencial do milagre é, antes, ser um sinal…, um sinal eloqüente de Deus aos
homens.
Para tanto, basta que o fato tido como portentoso seja inexplicável aos homens no
momento em que ocorre (a questão de saber se,
decênios mais tarde, será explicável não vem ao caso). É
necessário, porém, que o fato portentoso ocorra em contexto
religioso, como resposta de Deus a uma prece humilde e fervorosa;
o milagre assim entendido é um acontecimento que Deus utiliza para evidenciar aos homens e sua presença e a sua ação
providencial.
Assim, pode-se dizer que no milagre Deus não intervém necessariamente para
derrogar às lei da natureza (embora Ele o possa, já
que Ele é o Senhor da natureza, infinitamente sábio, santo e poderoso),
mas para fazê-la servir a um desígnio de Deus salvífico mais
amplo e profundo ou para fazer da natureza um instrumento de efusão mais densa da sua graça. A fé cristã ensina que no
fim dos tempos o Reino de Deus consumado implicará a remoção de toda imperfeição física ou moral existente nas criaturas.
Pois bem: o milagre há de ser considerado nesta perspectiva; é
uma antecipação da ordem final ou da restauração plena da natureza ferida pelo pecado (o milagre geralmente é uma cura, é a
solução esplêndida de um problema, é o término
imprevisto de uma aflição…) Desta maneira – repita-se – o milagre é sempre um sinal, um sinal religioso que prefigura a plenitude do Reino
de Deus iniciado por Cristo aqui na Terra.
Tal é a razão pela qual o autêntico milagre só pode ocorrer em contexto
religioso. Caso este venha a falar, tem-se um fato anormal, talvez inexplicável pela parapsicologia. Observemos: tal
contexto religioso deve ser digno de Deus, ou seja, isento de
charlatanismo, vaidade, imoralidade, ilusiosionismo… Nunca
será considerado milagre um fato que dê lucro financeiro ao
taumaturgo ou sirva para alimentar o orgulho do mesmo ou satisfazer à sensualidade; também não é milagre o que ocorre para
satisfazer à curiosidade dos espectadores, pois
Jesus recusou agir em resposta aos fariseus mal intencionados que
queriam um sinal do céu (cf. Mt 16,1-4).
A falsa concepção de Renan
Na base das afirmações até aqui apresentadas, verifica-se quão despropositadas são
as páginas de Renan, na sua Vie de Jésus
(1863, pp. L-LIII), em que formula as condições para que
haja milagre. Diz o seguinte:
“Nenhum milagre jamais ocorreu perante um grupo de homens capazes de averiguar a
índole milagrosa do fato… Por conseguinte, não
é em nome desta ou daquela filosofia, mas em nome de uma constante
experiência, que nós banimos da história o milagre. Nós não dizemos: “O milagre é impossível”, mas dizemos: “O milagre é algo jamais everiguado
até hoje”.
Para que se possa falar de milagre, Renan põe as seguintes condições:
“Se amanhã aparecesse um taumaturgo com credenciais sérias e declarasse que ele
poderia ressuscitar um morto, que se deveria
fazer ? Nomear-se-ia uma comissão de
fisiólogos, físicos, químicos, e pessoas peritas em crítica
histórica. Essa comissão escolheria um cadáver,
averiguaria estar realmente morto; designaria a sala em que se
deveria fazer a experiência, determinaria o conjunto deprecauções a tomar para
não deixar lugar a dúvida alguma. Se em tais condições ocorresse a ressurreição, ter-se-ia uma probabilidade quase equivalente à
certeza. Todavia, já que toda experiência deve poder repetir-se e visto que, em se tratando de milagre, não existem as
categorias de fácil ou difícil, o taumaturgo deveria
ser convidado a repetir o seu gesto maravilhoso. Se, em
todas as tentativas de repetição, o milagre ocorresse,
estariam comprovadas duas coisas:
1) no mundo acontecem fatos
sobrenaturais;
2) o poder de os produzir é conferido a certas pessoas. Mas quem não vê que jamais um milagre aconteceu em tais condições?”
Revista : “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 383 – Ano : 1994 – p. 146
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 383 – Ano : 1994 – p. 146
Fonte: http://cleofas.com.br/
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