19 de set. de 2013

Entrevista Exclusiva do Papa Francisco às revistas dos Jesuítas (última parte )

 Fronteiras e laboratórios
Criatividade, portanto: para um jesuíta é importante. O Papa Francisco, ao receber os Padres e colaboradores de La Civiltà Cattolica, tinha traçado uma tríade de outras características importantes para o trabalho cultural dos jesuítas. Regresso à memória desse dia, o passado 14 de Junho. Recordo que então, no colóquio prévio ao encontro com todo o nosso grupo, me tinha pré-anunciado a tríade: diálogo, discernimento, fronteira. E tinha insistido particularmente no último ponto, citando-me Paulo VI, que num famoso discurso tinha dito dos jesuítas: «Onde quer que, na Igreja, também nos campos mais difíceis e de vanguarda, nas encruzilhadas das ideologias e nas trincheiras sociais, tenha havido e haja o confronto entre as exigências ardentes do homem e a mensagem perene do Evangelho, lá estiveram e estão presentes os jesuítas».
Peço ao Papa Francisco algum esclarecimento: «Pediu-nos para estarmos atentos, para não cair na “tentação de domesticar as fronteiras: deve ir-se em direcção às fronteiras, e não trazer as fronteiras para casa a fim de envernizá-las um pouco e domesticá-las”. A que é que se referia? O que é que pretendia dizer-nos exactamente? Esta entrevista foi acordada num grupo de revistas dirigidas pela Companhia de Jesus: que convite deseja exprimir-lhes? Quais devem ser as suas prioridades?».
«As três palavras-chave que dirigi a La Civiltà Cattolica podem ser extensivas a todas as revistas da Companhia, quiçá com diferentes acentuações segundo a sua natureza e os seus objectivos. Quando insisto na fronteira, de modo particular, refiro-me à necessidade para o homem da cultura de estar inserido no contexto em que opera e sobre o qual reflecte. Está sempre à espreita o perigo de viver num laboratório. A nossa fé não é uma fé-laboratório, mas uma fé-caminho, uma fé histórica. Deus revelou-Se como história, não como um compêndio de verdades abstractas. Tenho medo dos laboratórios, porque no laboratório pegam-se nos problemas e levam-se para a própria casa, para domesticá-los, para os envernizar, fora do seu contexto. Não é preciso levar a fronteira para casa, mas viver na fronteira e ser audazes».
Peço ao Papa se pode dar algum exemplo baseado na sua experiência pessoal.
«Quando se fala de problemas sociais, uma coisa é reunir-se para estudar o problema da droga num bairro-de-lata, e uma outra coisa é ir lá, morar e compreender o problema a partir de dentro e estudá-lo. Há uma carta genial do P. Arrupe aos Centros de Investigación y Acción Social (CIAS) sobre a pobreza, na qual se diz claramente que não se pode falar de pobreza se não se experimenta com inserção direta nos lugares nos quais ela se vive. Esta palavra “inserção” é perigosa, porque alguns religiosos a tomaram como uma moda, e aconteceram desastres por falta de discernimento. Mas é verdadeiramente importante».
«E as fronteiras são tantas. Pensemos nas religiosas que vivem nos hospitais: elas vivem nas fronteiras. Eu estou vivo graças a uma delas. Quando tive o problema no pulmão no hospital, o médico deu-me penicilina e estrectomicina em certas doses. A Irmã que estava de serviço triplicou as doses, porque tinha intuição, sabia o que fazer, porque estava com os doentes todo o dia. O médico, que era verdadeiramente bom, vivia no seu laboratório, a Irmã vivia na fronteira e dialogava com a fronteira todos os dias. Domesticar a fronteira significa limitar-se a falar de uma posição distante, fechar-se nos laboratórios. São coisas úteis, mas a reflexão para nós deve sempre partir da experiência».

 Como o homem se compreende a si mesmo
Pergunto então ao Papa se isto é válido e de que modo, mesmo para uma fronteira cultural importante, como é a do desafio antropológico. A antropologia a que a Igreja tradicionalmente tem feito referência e a linguagem com a qual a expressou mantêm-se como uma referência sólida, fruto da sabedoria e da experiência seculares. Todavia, o homem a que a Igreja se dirige já não parece compreendê-las ou considerá-las suficientes. Começo a pensar no facto de que o homem está a interpretar-se num modo diferente do passado, com categorias diferentes. E isto também por causa das grandes mudanças na sociedade e de um mais amplo estudo de si próprio...
O Papa neste momento levanta-se e vai buscar o breviário à sua escrivaninha. É um breviário em Latim, já muito gasto pelo uso. Abre-o no Ofício de Leitura da Feria sexta, isto é, sexta-feira da XXVII semana. Lê-me uma passagem tirada do Commonitórium Primum de São Vicente de Lérins: ita étiam christiánae religiónis dogma sequátur has decet proféctuum leges, ut annis scílicet consolidétur, dilatétur témpore, sublimétur aetáte (“Mesmo o dogma da religião cristã deve seguir estas leis de aperfeiçoamento. Progride, consolidando-se com os anos, desenvolvendo-se com o tempo, aprofundando-se com a idade”)».
E assim continua o Papa: São Vicente de Lérins faz a comparação entre o desenvolvimento biológico do homem e a transmissão de uma época à outra do depositum fidei, que cresce e se consolida com o passar do tempo. Cá está: a compreensão do homem muda com o tempo e assim também a consciência do homem aprofunda-se. Pensemos no tempo em que a escravatura era aceite ou a pena de morte era admitida sem nenhum problema. Assim, cresce-se na compreensão da verdade. Os exegetas e os teólogos ajudam a Igreja a amadurecer o próprio juízo. Também as outras ciências e a sua evolução ajudam a Igreja neste crescimento na compreensão. Existem normas e preceitos eclesiais secundários que noutros tempos eram eficazes, mas que agora perderam valor ou significado. Uma visão da doutrina da Igreja como um bloco monolítico a defender sem matizes é errada».
«De resto, em cada época o homem procura compreender e exprimir melhor a sua própria realidade. E assim o homem, com o tempo, muda o modo de se perceber a si mesmo: uma coisa é o homem que se exprime esculpindo a Nike (Vitória) de Samotrácia, outra a de Caravaggio, outra a de Chagall e ainda outra a de Dalí. Também as formas de expressão da verdade podem ser multiformes e isto é necessário para a transmissão da mensagem evangélica no seu significado imutável».
«O homem está à procura de si mesmo, e, obviamente, nesta procura pode também cometer erros. A Igreja viveu tempos de genialidade, como, por exemplo, o do tomismo. Mas viveu também tempos de decadência de pensamento. Por exemplo, não podemos confundir a genialidade do tomismo com o tomismo decadente. Eu, infelizmente, estudei a filosofia com manuais de tomismo decadente. No pensar o homem, portanto, a Igreja deveria tender à genialidade, não à decadência».
«Quando é que uma expressão do pensamento não é válida? Quando o pensamento perde de vista o humano ou até quando tem medo do humano ou se deixa enganar sobre si mesmo. É o pensamento enganado que pode ser representado como Ulisses diante do canto das sereias, ou como Tannhäuser, rodeado numa orgia por sátiros e bacantes, ou como Parsifal, no segundo acto da ópera wagneriana, no castelo de Klingsor. O pensamento da Igreja deve recuperar genialidade e entender sempre melhor como é que o homem se compreende hoje, para desenvolver e aprofundar o próprio ensino».

 Rezar
Coloco ao Papa uma última pergunta sobre o seu modo preferido de rezar.
«Rezo o Ofício todas as manhãs. Gosto de rezar com os Salmos. Depois, a seguir, celebro a Missa. Rezo o Rosário. O que verdadeiramente prefiro é a Adoração vespertina, mesmo quando me distraio e penso noutra coisa ou mesmo quando adormeço rezando. Assim, à tarde, entre as sete e as oito, estou diante do Santíssimo durante uma hora, em adoração. Mas também rezo mentalmente quando espero no dentista ou noutros momentos do dia».
«E a oração é para mim uma oração “memoriosa”, cheia de memória, de recordações, também memória da minha história ou daquilo que o Senhor fez na sua Igreja ou numa paróquia particular. Para mim é a memória de que Santo Inácio fala na Primeira Semana dos Exercícios, no encontro misericordioso com Cristo Crucificado. E pergunto-me: “Que fiz por Cristo? Que faço por Cristo? Que farei por Cristo?” É a memória de que fala Inácio também na Contemplatio ad amorem, quando pede para trazer à memória os benefícios recebidos. Mas, sobretudo, eu sei também que o Senhor tem memória de mim. Eu posso esquecer-me d’Ele, mas sei que Ele nunca, nunca, se esquece de mim. A memória funda radicalmente o coração de um jesuíta: é a memória da graça, a memória de que se fala no Deuteronómio, a memória das obras de Deus que estão na base da aliança entre Deus e o seu povo. É esta memória que me faz filho e me faz ser também pai».

 Conclusão
Dou-me conta que continuaria ainda por muito tempo este diálogo, mas sei que, como o Papa disse uma vez, não é preciso «maltratar os limites». Dialogámos amplamente por mais de seis horas, ao longo de três encontros, nos dias 19, 23 e 29 de Agosto. Aqui preferi articular o discurso sem assinalar os intervalos, para não perder o fio condutor. A nossa foi, na realidade, uma conversa, mais que uma entrevista: as perguntas fizeram de pano de fundo sem limitá-la em parâmetros pré-definidos e rígidos. Mesmo linguisticamente atravessámos fluidamente o Italiano e o Espanhol sem que nos apercebêssemos de quando em vez das mudanças. Não houve nada de mecânico e as respostas nasceram no interior de um pensamento que aqui procurei transmitir, de modo sintético, o melhor que pude.

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