Talvez precisemos reaprender o que significa ser família
Quando o Verbo de Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade, decidiu vir ao mundo, Ele escolheu nascer em uma família, como um
bebê indefeso. Pense no quanto isso é belo!
E pense também no quanto isso é estranho…
Se Ele tivesse me pedido sugestões (e temos que agradecer
por Ele não ter pedido!) sobre como fazer a entrada na história mais importante
de todo o universo, eu teria sugerido uma estratégia completamente diferente,
algo que as pessoas não pudessem ignorar, algo que nunca fosse esquecido, algo
majestoso, até um pouco espalhafatoso, algo realmente grande! Afinal, uma das
vantagens de ser onipotente é que você pode fazer o que bem quiser!
Que tal chegar numa carruagem de fogo, cercado por todas as
hostes celestiais? Ou entre relâmpagos e trovões, ou talvez no meio de um terremoto
(mas não daqueles graves)? Enfim, uma entrada triunfal que chamasse com plena
certeza a atenção do mundo inteiro?
Ou, se a pirotecnia celeste fosse mesmo considerada vistosa
demais, por que não simplesmente emergir do Santo dos Santos no Templo de
Jerusalém? E ao som de algumas trombetas do paraíso, pelo menos… Ou, se é para
ser ainda mais sutil, por que não esconder-se dentro do Santo dos Santos (que,
afinal de contas, era a casa dele) até o único dia do ano em que o sumo
sacerdote podia entrar lá? “Olhem só quem eu encontrei”! Isto é que seria uma
surpresa!
Mas se Ele ainda insistisse tanto em nascer (o que parece um
tanto inconveniente e ineficiente), por que então não nascer como filho do
imperador de Roma? O palácio dos Césares, mesmo não tendo água encanada, pelo
menos teria sido muito mais confortável do que nascer no cocho em que os
animais comiam! Afinal, se a ideia de vir ao mundo era que as pessoas o
conhecessem, ser filho do imperador teria tido várias vantagens!
Nosso Senhor, porém, tinha outros planos. E o plano
realizado, agora que pensamos nele com calma, acabou sendo memoravelmente muito
maior do que a vã e melodramática abordagem que a sabedoria deste mundo teria
escolhido. O drama do seu nascimento, de nascer de verdade, ou seja, de
escolher vir ao mundo como um bebê indefeso, proclama de uma forma
verdadeiramente inesquecível a profundidade do Seu amor, não apenas ao se
tornar um de nós (como se isto não fosse o suficiente!), mas também ao nos
conceder a dignidade imensa de poder abraçá-lo e cuidar dele. É isto o que
recordamos no Natal e, espero eu, todos os dias. Mas o fato de Ele ter nascido
em uma família, o significado de longo alcance deste gesto, nós muitas vezes
ignoramos. Por que em uma família? Há outras maneiras de nascer e, como vimos,
de fazer uma entrada triunfal no mundo.
Ele escolheu nascer numa família porque era com isto que Ele
já estava habituado.
Ele veio de uma família. Costumamos falar da relação, da
vida interior das pessoas da Santíssima Trindade, em termos de uma comunhão de
pessoas, mas não como uma família. E algumas das grandes expressões teológicas,
inadequadas como toda expressão humana, conseguem tocar na beleza desta
misteriosíssima vida interior: por exemplo, “perichoresis”, que se refere à
intimidade, à inabitação das Pessoas Divinas, a sua coinerência, e,
deliciosamente, o eco de luz da palavra grega “dançar”, cujo radical faz parte
do termo “perichoresis”, de modo a imaginarmos a grande e eterna “dança” de
alegria das Pessoas Divinas. No entanto, a ideia de família, como a unidade
vivificante e sustentadora que é a base de tudo, não é uma expressão ruim para
a comunhão de amor que é a Trindade.
Pertencendo, pois, à família inigualável da Trindade,
formada pelo Pai que ama o Filho, pelo Filho que ama o Pai e pelo Espírito que
é um amor tão real a ponto de ser uma Pessoa, não nos surpreende que o Verbo,
agora feito carne, queira viver em uma família humana. E assim Ele transformou
a dignidade natural da família humana numa dignidade maior ainda: reforçando,
enobrecendo, elevando a família humana para que ela participe até mesmo da vida
interior da Família que é a Trindade, à qual todos nós somos convidados.
É claro que a Sagrada Família, com os exemplos incomparáveis
de humildade e mansidão que Maria e José manifestaram de forma proeminente, se
torna um verdadeiro e muito necessário guia, para nós, de como viver em nossas
próprias famílias: seu exemplo de união, de vida fiel e de capacidade de
sacrifício se tornou a luz para a nossa própria vida em família. Mas há mais
ainda.
A Festa da Sagrada Família ressalta não somente o início da
nossa compreensão do que é uma família e da nossa participação nesta graça (ou
seja, as nossas próprias famílias particulares); não somente aviva o nosso
olhar sobre a finalidade suprema, sobre o grande convite e a honra mais sublime
(ou seja, participar da Família da Trindade); mas também nos dá os meios para
aperfeiçoar essa compreensão e para atingir essa finalidade, mostrando-nos a profunda
natureza da Igreja, que é a família dos filhos de Deus.
Como é triste que, tantas vezes, a Igreja seja vista como
uma instituição (o que, naturalmente, é necessário que ela seja para existir
neste mundo e cumprir a sua missão) e não principalmente como uma família. Nós
nos chamamos uns aos outros (espero) de irmãos e irmãs, chamamos as freiras de
irmãs, os religiosos de irmãos, os sacerdotes de padres ("pais", o
que é uma alegria magnífica para os sacerdotes!), Maria de nossa Mãe e Deus de
nosso Pai; no entanto, esses termos podem se tornar tão corriqueiros que nos
esquecemos da realidade que eles expressam: que nós somos uma só família,
grande, irascível de vez em quando, sofredora, alegre… Enfim, uma família!
Assim, eu tenho que admitir a inteligência de nosso Senhor
ao escolher nascer, e nascer numa família, coisa muito mais profunda que
qualquer alternativa que poderíamos imaginar. Nesta festa da Sagrada Família,
poucos dias depois do nascimento de Cristo, vemos o que as nossas próprias
famílias podem se tornar a exemplo da Sagrada Família, tanto na grande família
da Igreja, à qual já pertencemos, quanto na intimidade e na glória inexprimível
a que somos convidados na grande Família da Trindade.
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