A devoção a este ou aquele santo não é obrigatória. Mas, com
a Virgem Santíssima não é assim. Desde o tempo dos apóstolos, a Igreja ensina
que Nossa Senhora possui um papel determinante na salvação da humanidade.
O padre Reginaldo Garrigou-Lagrange, em seu livro La Madre
del Salvador e Nuestra Vida Interior ["A Mãe do Salvador e Nossa Vida
Interior"][1], explica com grande profundidade teológica por que se invoca
Nossa Senhora como "corredentora" e "medianeira de todas as
graças", desde tempos antiquíssimos.
Ele começa a sua reflexão explicando em que consiste a
expressão "nova Eva", comumente usada para se referir à Virgem Maria:
"como Eva esteve unida ao primeiro homem na obra da perdição, Maria devia
estar unida ao Redentor na obra da reparação" [2]. A Tradição testemunha
que esta é uma forma de invocação da Igreja desde tempos imemoriais:
"Com efeito, já no século II, esta doutrina de Maria,
nova Eva, está universalmente admitida, e os Padres que a expõem não o fazem
como se fosse uma especulação pessoal, mas como doutrina tradicional na Igreja,
que se apoia nas palavras de São Paulo, em que ele chama Cristo de novo Adão e
o contrapõe ao primeiro, como a causa da salvação se opõe à da queda (cf. 1 Cor
15, 45ss; Rm 5, 12ss; 1 Cor 15, 20-23). Os Padres relacionam estas palavras de
São Paulo com o relato da queda, a promessa da redenção e da vitória sobre o
demônio (cf. Gn 3, 15) e com o relato da Anunciação (Lc 1, 26-28), onde se fala
do consentimento de Maria na realização do mistério da Encarnação
redentora."
"Pode-se, pois, e ainda se deve ver nesta doutrina de
Maria – nova Eva associada à obra redentora de seu Filho – uma tradição
divino-apostólica." [3]
O pe. Garrigou-Lagrange explica ainda como o termo
"nova Eva" traz à luz a realidade de que Maria cooperou na redenção,
junto com Jesus:
"Como Eva cooperou moralmente para a queda, cedendo à
tentação do demônio, por um ato de desobediência e induzindo Adão ao pecado,
Maria, pelo contrário, nova Eva, cooperou moralmente em nossa redenção,
conforme o plano divino, crendo nas palavras do arcanjo Gabriel e consentindo
livremente no mistério da Encarnação redentora e em todos os sofrimentos que
d'Ele se deduziriam para seu Filho e para ela."
"Maria, certamente, não é a causa principal e efetiva
da redenção; não nos podia resgatar condignamente, em justiça, porque faltava,
para isso, um ato teândrico de valor intrinsecamente infinito, que só pode
pertencer a uma pessoa divina encarnada. Mas Maria é realmente causa secundária,
subordinada a Cristo e dispositiva de nossa redenção. Diz-se 'subordinada a
Cristo', não só no sentido de que é inferior, mas também porque concorre à
nossa salvação por uma graça proveniente dos méritos de Cristo, e obra, pois,
n'Ele, com Ele e por Ele, in ipso, cum ipso et per ipsum. Não se deve nunca
perder de vista que Cristo é o mediador universal supremo e que Maria foi
resgatada pelos méritos do Salvador, por uma redenção preservadora, não
libertadora, posto que foi preservada do pecado original e logo de toda falta,
pelos méritos futuros do Salvador de todos os homens." [4]
Então, o Redentor é um só, Jesus, e Maria coopera nessa obra
não como uma pessoa que ajuda parcialmente a puxar uma carroça, mas como uma
árvore cujo fruto, em última instância, vem de Deus. Tanto Jesus quanto Maria
atuam na obra da redenção, só que um de forma originária, transcendente e
divina; e o outro, de forma secundária e subordinada. O fruto veio da árvore,
mas tanto a árvore quanto o fruto, na verdade, vieram de Deus.
Primeiramente, é preciso entender que Maria gerou Jesus por
um ato da liberdade divina. Deus, onipotente que é, podia ter mandado o Seu
Filho ao mundo de muitas outras formas, mas preferiu servir-se da cooperação de
uma criatura humana. Sem dúvida, Deus é a origem da salvação: foi Jesus quem
pagou o preço por nossos pecados, morrendo na Cruz e derramando o Seu sangue
por nós. Mas, quem tornou possível, com o seu "sim", que o Verbo
tomasse um corpo humano, a fim de sacrificá-lo na Cruz? Foi Maria Santíssima.
Visitada pelo arcanjo Gabriel, ela deu o seu consentimento à vontade divina,
tornando possível a encarnação do Verbo e a salvação do gênero humano. O fato
de o próprio Todo-Poderoso fazer-se "dependente", por assim dizer, da
liberdade de uma criatura, não diminui em nada a Sua obra salvífica. Pelo
contrário, só a torna ainda mais maravilhosa, só mostra o quanto é eficaz a
vontade de Deus. Como diz Santo Tomás de Aquino, "a vontade divina, sendo
eficacíssima, não somente produz as coisas que quer que se façam, mas, também
do modo pelo qual assim as quer. Ora, Deus quer que algumas se façam
necessariamente; outras, contingentemente" [5]. O Senhor fez que a
encarnação do Verbo acontecesse contingentemente, dependendo da liberdade de
uma criatura. E isto torna esta obra ainda mais admirável.
Maria, então, ao aceitar ser Mãe do Redentor, tornou-se mãe
de todos os homens. Explica Garrigou-Lagrange:
"Maria converteu-se em nossa Mãe ao consentir
livremente em ser a Mãe do Salvador, autor da graça, que nos gerou
espiritualmente. Neste instante nos concebeu espiritualmente, de tal maneira
que teria sido nossa Mãe adotiva por este fato, ainda que morresse antes de seu
Filho."
"Quando depois Jesus consumou sua obra redentora pelo
sacrifício da Cruz, Maria, ao unir-se a este sacrifício, por um ato de fé, de
confiança e de amor a Deus e às almas, o maior que já existiu, converteu-se, de
um modo mais perfeito, em nossa Mãe, por uma cooperação mais direta, mais
íntima e mais profunda em nossa salvação."
"Além disso, neste momento, foi proclamada nossa Mãe,
pelo Salvador, quando lhe disse, ao falar de São João, que personificava todos
os que deviam ser resgatados por seu sangue: Mulher, eis aí o vosso filho, e a
João: Eis aí a vossa mãe (Jo 19, 26-27). Assim entendeu a Tradição estas
palavras, porque neste momento e diante de testemunhas, o Salvador de todos os
homens não outorgava este privilégio particular só a São João, mas a todos os
que haviam de ser regenerados pelo sacrifício da Cruz."
"Estas palavras do moribundo Jesus, como as palavras
sacramentais, produziram o que significavam: Na alma de Maria um grande aumento
de caridade ou de amor maternal por nós; na alma de João um afeto filial
profundo e cheio de respeito pela Mãe de Deus. Esta é a origem da grande
devoção a Maria."
"Finalmente, a Santíssima Virgem continua exercendo sua
função de Mãe em relação a nós, velando por nós para que cresçamos em caridade
e perseveremos nela, intercedendo por nós e distribuindo-nos todas as graças
que recebemos." [6]
Aos pés da Cruz, Maria entregou-se junto com seu Filho,
fazendo companhia ao "novo Adão" e podendo com razão ser chamada
"nova Eva" e "corredentora". Este título, embora não tenha
sido proclamado como dogma, poderá sê-lo, no futuro, já que se trata de uma
afirmação presente em muitíssimos documentos papais e largamente ratificada
pela Tradição.
Então, a Virgem Maria, por instituição do próprio Jesus [7],
é responsável por gerar, até o fim dos tempos, todos os homens. "Maria é
nossa Mãe espiritual e adotiva, no sentido de que por sua união com Cristo
Redentor, nos comunicou a vida sobrenatural da graça" [8]. Mas, escreve o
padre Garrigou-Lagrange:
"Maria não é da mesma maneira a Mãe dos fiéis e dos
infiéis, dos justos e dos pecadores. Convém fazer aqui a distinção admitida, a
respeito de Jesus Cristo, em relação aos diversos membros de seu corpo místico.
É Mãe, relativamente aos infiéis, enquanto está destinada a engendrá-los para a
vida da graça e enquanto obtém graças atuais que os dispõem para a fé e para a
justificação. É Mãe dos fiéis que estão em estado de pecado mortal, no sentido
de que vela atualmente por eles obtendo-lhes graças necessárias para fazer atos
de fé e esperança e para dispor-se à conversão; com relação aos que morrem na
impenitência final, já não é sua Mãe, mas o foi. Quanto aos justos é sua Mãe em
sentido pleno, pois receberam por sua cooperação voluntária e meritória a graça
santificante e a caridade; vela por ele com terna solicitude para que
permaneçam em estado de graça e vão crescendo na caridade. É finalmente a Mãe,
por excelência, dos bem-aventurados que não podem perder a vida da graça."
[9]
Diante de toda essa exposição, alguém pode perguntar se tudo
isso não é muito exagerado. Na verdade, não. Maria é verdadeiramente mãe de
todos os homens, assim como Jesus é cabeça de todos os homens [10]. "A
mesma mãe não pode dar à luz a cabeça ou o chefe sem os membros, nem os membros
sem a cabeça: isso seria uma monstruosidade da natureza", ensina São Luís
Maria Grignion de Montfort. "Se Jesus Cristo, cabeça dos homens, nasceu
d'Ela, todos os predestinados, membros desta cabeça, também d'Ela devem nascer,
por uma consequência necessária" [11].
A Virgem Santíssima também é invocada pelo povo cristão sob
o título de "medianeira de todas as graças". Uma medianeira pode ser
assim chamada por ser sacerdote, mas não se trata disso, como explica
Garrigou-Lagrange:
"Se Maria pode chamar-se corredentora no sentido que
acabamos de explicar, não poderíamos dizer que é sacerdote no sentido estrito
da palavra, pois não recebeu o caráter sacerdotal e não podia consagrar a
Eucaristia nem dar a absolvição sacramental. Mas, como vimos ao falar da
maternidade divina, esta é superior ao sacerdócio dos ministros de Cristo, no
sentido de que é mais perfeito dar a nosso Senhor sua natureza humana que fazer
presente seu corpo na Eucaristia. Maria proporcionou-nos o Sacerdote do
sacrifício da Cruz, o ministro principal do sacrifício da Missa e a vítima
oferecida em nossos altares."
"É mais perfeito também oferecer seu Filho único e seu
Deus na Cruz – oferecendo-se com Ele com os maiores tormentos – que fazer
presente sobre o altar e oferecer nele o corpo de nosso Senhor Jesus Cristo,
como o faz o sacerdote durante o sacrifício da Missa."
(...)
"Se não se lhe pode chamar 'sacerdote' no sentido
próprio da palavra, pelo fato de que não recebeu o caráter sacerdotal e não
pode realizar os atos próprios dele, sempre fica, como diz M. Olier, 'que
recebeu o espírito do sacerdócio, que é o espírito de Cristo Redentor'. Por
isto se lhe dá o título de corredentora, que, como o de Mãe de Deus, supera a
dignidade outorgada pelo sacerdócio cristão." [12]
Santo Alberto Magno escreve: "Beata Virgo Maria non est
assumpta in ministerium a Domino, sed in consortium et in adiutorium, secundum
illud: Faciamus ei adiutorium simile sibi" [13]. Maria era gratia plena,
tinha todas as graças. Não tinha a graça do sacerdócio porque possuía algo
muito maior: a maternidade divina e o oferecimento de seu próprio Filho na
Cruz.
A Santíssima Virgem, como mediadora, deve fazer duas coisas:
oferecer orações e súplicas (aspecto ascendente) e, ao mesmo tempo,
distribuir-nos as graças (aspecto descendente). Configurada completamente a
Jesus, é impossível que Ele não atenda às suas preces. Por isso a Igreja a
chama de "onipotência suplicante". Peçamos, pois, a esta
misericordiosa Mãe que nos ajude a amá-la cada vez mais, para que também nós
nos assemelhemos cada vez mais a seu divino Filho e nos tornemos seus filhos
por excelência, um dia, no Céu.
Referências
O livro está disponível em PDF na Internet, mas também pode
ser adquirido no site Cultor de Livros.
La Madre del Salvador y Nuestra Vida Interior, p. 157
Ibidem, p. 160
Ibidem, p. 161-162
Suma Teológica, I, q. 19, a. 8
La Madre del Salvador y Nuestra Vida Interior, p. 165-166
Cf. Jo 19, 26-27
La Madre del Salvador y Nuestra Vida Interior, p. 163
Ibidem, p. 167
Cf. Suma Teológica, III, q. 8, a. 3
Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, 32
La Madre del Salvador y Nuestra Vida Interior, p. 196-197
Mariale, q. 42. Apud La Madre..., p. 162
Fonte: https://padrepauloricardo.org
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