O santo dos novos tempos
Em um jardim de Milão, no final da Idade Antiga, um homem se
convertia à fé cristã. Seu nome é Agostinho e a sua obra é um legado que mudará
não só a história da Igreja, como toda a humanidade.
O santo dos novos tempos
A Idade Média é o período de mil anos que vai de 476, queda
do Império Romano do Ocidente, até 1453, ano da tomada de Constantinopla pelos
turcos otomanos e derrocada do Império Bizantino. Neste período, o pensamento
cristão foi muito importante, influenciando a sociedade como um todo e lançando
as bases da civilização ocidental, hoje em franca decadência.
Antes de falar do gênio de Santo Agostinho, que perpassa
toda a era medieval, importa ressaltar a utilíssima divisão entre o Ocidente e
o Oriente para compreender a própria história da Igreja. Ao transferir a
capital do Império para Constantinopla, Constantino cria uma espécie de
“estranhamento” entre os dois lados do território romano. Enquanto a parte
oeste é cada vez mais marcada pela cultura romano-latina, preferindo o uso da
língua latina, a parte leste é fortemente influenciada pelo helenismo e pelas
culturas orientais, servindo-se do idioma grego. Além disso, na Igreja no
Ocidente, o papel soberano do bispo de Roma sempre foi reconhecido sem muitas
discussões, de modo que ele já exercia sua jurisdição universal sobre a Igreja
desde o alvorecer da fé. A Igreja no Oriente, por outro lado, sofria com o
problema do cesaropapismo, pelo qual o imperador de Constantinopla usurpava o
poder pontifício, misturando desastradamente as esferas política e religiosa. A
cisão no Império culmina com o cisma religioso do Oriente, em 1054, quando é
criada a Igreja Ortodoxa.
Finalmente, detenhamo-nos sobre a figura de Agostinho de
Hipona, cuja filosofia e teologia influenciaram toda a Idade Média.
Cronologicamente, o santo pertence à Idade Antiga – nasceu em Tagaste, na
África, em 13 de novembro de 354, e morreu em Hipona, em 28 de agosto de 430 –,
mas sua importância para os tempos medievais é tão grande que Daniel-Rops lhe
reserva o epíteto de “santo dos novos tempos” [1].
Tendo concluído seus estudos primários em Tagaste e se
tornado grande orador em Cartago, Agostinho, muito mais romano que seus
conterrâneos, viaja cedo para a Cidade Eterna, a fim de fazer carreira. Nessa
época, ele já entrara em contato com o maniqueísmo, a religião do profeta persa
Mani, que pregava o dualismo gnóstico. Até então, o único contato de Agostinho
com a religião católica fora por meio de sua mãe, Mônica, e ela não conseguira
trazê-lo para a fé.
Em Milão, Agostinho conhece o grande bispo e pregador Santo
Ambrósio, diante de cuja oratória fica impressionado. Depois de entrar em
contato com a obra “Hortênsio”, de Cícero, e com os filósofos neoplatônicos,
ele abandona definitivamente o maniqueísmo e convence-se de que, mais do que
aprender retórica, o que ele precisa é conhecer a Verdade. Na ocasião, ainda
preso às paixões carnais que o arrastavam desde a adolescência ociosa, a
narração de um tal Ponticiano fá-lo repensar a sua vida. Ele conta a Agostinho
a vida de Santo Antão e fala de jovens na própria cidade de Milão que se
decidiram firmemente em abandonar tudo o que tinham para servir a Deus na
castidade e na vida escondida [2].
Impressionado com o que ouvia e lamentando a vida dissoluta
que levava até então, Agostinho vive uma dramática luta interior:
“Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que
de costume, rolando-me e debatendo-me dentro de minha cadeias, para ver se as
quebrava por completo.
(...)
E dizia comigo mesmo: “Vamos! Mãos à obra, sem demoras!” E
quase passava da palavra à ação. Estava a ponto de agir, mas não agia. Eu já
não recaía nas antigas paixões, mas delas estava bem próximo, e tomava ainda
alento de seu ar.
(...)
Mantinham-me preso umas tantas bagatelas, umas vaidades de
vaidades, antigas amigas minhas, que me puxavam por minhas vestes carnais,
murmurando: ‘Então, nos abandonas? De agora em diante nunca mais estaremos
contigo? Desde este momento nunca mais te será lícito isto ou aquilo?’
(...)
Mas isto já dizia com voz muito débil. Para onde voltava o
rosto, e por onde temia passar, mostrava-se para mim a casta dignidade da
continência, serena e alegre, sem desordens, acariciando-me honestamente para
que me aproximasse sem medo.
(...)
E a continência zombava de mim com ironia animadora, como se
dissesse: ‘Então, não serás capaz de fazer o mesmo que eles? Ou será que estes
e estas encontraram forças em si mesmos, e não no Senhor, seu Deus? Foi o
Senhor Deus, quem me entregou a eles. Por que te apoias em ti, se és vacilante?
Lança-te nele, não temas, que ele não se apartará de ti, e tu não cairás.
Lança-te com confiança, que ele te receberá e te curará.’
E enchia-me de vergonha por ainda ouvir o murmúrio daquelas bagatelas
e, vacilante, continuava indeciso.” [3]
Até que ele se rende e deixa que Deus vença a sua carne:
“Mas logo que esta profunda reflexão tirou da profundeza de
minha alma, e expôs toda minha miséria à vista de meu coração, caiu sobre mim enorme tormenta,
trazendo copiosa torrente de lágrimas.
(...)
E embora não com estes termos, mas com o mesmo sentido,
muitas coisas te disse como esta: E tu, Senhor, até quando? Até quando, Senhor,
hás de estar irritado! Esquece-te de minhas iniquidades passadas! Sentia-me
ainda preso a elas, e gemia, e lamentava: Até quando? Até quando direi amanhã,
amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora às minhas torpezas?’
Assim falava, e chorava oprimido pela mais amarga dor do meu
coração. Mas eis que, de repente, ouço da casa vizinha uma voz, de menino ou
menina, não sei, que cantava e repetia muitas vezes: ‘Toma e lê, toma e lê’.
E logo, mudando de semblante, comecei a buscar, com toda a
atenção em minhas lembranças se porventura esta cantiga fazia parte de um jogo
que as crianças costumassem cantarolar; mas não me lembrava de tê-la ouvido
antes. Reprimindo o ímpeto das lágrimas, levantei-me. Uma só interpretação me
ocorreu: a vontade divina mandava-me abrir o livro e ler o primeiro capitulo
que encontrasse.
(...)
Depressa voltei para o lugar onde Alípio estava sentado, e
onde eu deixara o livro do Apóstolo ao me levantar. Peguei-o, abri-o, e li em
silêncio o primeiro capítulo que me caiu sob os olhos: ‘Não caminheis em
glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades,
não em contendas e rixas; mas revesti-vos de nosso Senhor Jesus Cristo, e não
cuideis de satisfazer os desejos da carne’.
Não quis ler mais, nem era necessário. Quando cheguei ao fim
da frase, uma espécie de luz de certeza se insinuou em meu coração, dissipando
todas as trevas de dúvida.” [4]
Com aquela página das Escrituras aberta, começa a ser
escrita uma nova página da história. A conversão de Santo Agostinho não mudou
somente a sua vida, mas toda a história da Igreja e da própria humanidade. Na
vigília pascal próxima, ele, seu filho Adeodato e seu amigo Alípio são
batizados por Ambrósio. Depois, Agostinho volta para a África. Neste ínterim,
morrem seu filho e sua santa mãe, Mônica, com a qual ele tem uma grande
experiência mística em Óstia.
Já na África, levando uma vida de muita oração e
contemplação da Verdade, Agostinho percebe que, após a conversão, sua
inteligência passa a compreender mais facilmente as coisas. Além da luz natural
da razão, agora o auxiliava o dom sobrenatural da graça.
Ordenado presbítero, depois de muita insistência do bispo
Valério, o doctor gratiae sucede-o na comunidade de Hipona, onde erige o seu
grande monumento intelectual, De Civitate Dei [“A Cidade de Deus”]. Essa obra,
inspirada pela situação trágica em que do Império Romano invadido pelos
bárbaros, aponta para a existência de duas cidades invisíveis, fundadas por
dois amores opostos: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor
próprio, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo
de si próprio, a celestial” [5].
Sobre esta cultura será moldada a Europa cristã. Sobre este
gigante intelectual se edificam os mil anos de Idade Média, durante os quais a
Igreja resgata o Ocidente da barbárie e das verdadeiras trevas que até hoje
ameaçam a humanidade: o afastamento de Deus e de Sua vontade.
Referências
Cf. Henri Daniel-Rops. A Igreja dos tempos bárbaros.
Quadrante: São Paulo, 1991, p. 9
Cf. Santo Agostinho, Confissões, VIII, 6
Confissões, VIII, 11
Ibidem, VIII, 12
De Civitate Dei, XIV, 27
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