21 de fev. de 2014

A qualidade do teu silêncio

Todos falamos e silenciamos. Palavra e silêncio não são contrários, mas se completam reciprocamente.

Há momentos em que sentimos uma forte necessidade de gritar, de exteriorizar o que se passa dentro de nós, de dizer, verbalizar os nossos sentimentos. Em outros, percebemos forte o desejo de silenciar, de fugir dos ruídos, desligar os aparelhos de som e entrar na intimidade de nós mesmos, em contato com a natureza.
Devemos refletir: “Qual é a qualidade da nossa palavra e a do nosso silêncio? Por que falamos, escrevemos ou silenciamos? Por que temos necessidade de nos esconder ou de subir nos telhados para proclamar a mensagem nova do Evangelho de Jesus?”
Gosto de ler no Evangelho o delicioso episódio de Marta e Maria. O evangelista Lucas, atento aos mínimos particulares da vida de Jesus, é o único que nos relata o texto. Ele o faz com uma delicadeza particular e nos leva suavemente à casa de Betânia, onde podemos contemplar a beleza da amizade que surge como flor perfumada na vida de Jesus. Vamos ler este texto juntos, várias vezes, tentando penetrar na intimidade daquela família amiga de Jesus.
Pondo-se a caminho, Jesus entrou num povoado. Uma mulher, de nome Marta, o recebeu em sua casa. Ela tinha uma irmã chamada Maria que, sentada aos pés do Senhor, escutava a sua palavra. Marta, porém, andava atarefada com o muito serviço. Parou e disse: “Senhor, não te importa que minha irmã me deixe sozinha no serviço? Dize-lhe que me venha ajudar”. O Senhor lhe respondeu: “Marta, Marta, andas muito agitada e te preocupas com muitas coisas. Entretanto, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada” (Lc 10,38-42).
Pondo-se a caminho…
Todos estamos sempre a caminho. Realizamos na vida o nosso êxodo, saímos do seio do Pai, saímos do ventre de nossa mãe e somos como que projetados fora e obrigados a fazer o nosso caminho, em busca de algo que possa nos realizar e satisfazer plenamente. Embora nos seja difícil parar, porque muitas coisas nos chamam a continuar o caminho, há momentos em que é preciso fazer como Jesus, separar-se um pouco da multidão, dos discípulos e entrar na casa…
O entrar e sair faz parte da linguagem de Jesus e de todos os místicos. Em São João da Cruz esta expressão assume um sentido especial. É necessário sair de si para penetrar no mistério de Deus e chegar às profundidades do amor e da experiência do amor. O Verbo divino sai do seio eterno para entrar na história da humanidade e, mais tarde, sair de novo da humanidade para reentrar na glória eterna. Este movimento do entrar e sair nos faz compreender como toda a vida é caminho, mas é preciso saber por onde caminhamos e aonde queremos chegar.
Uma mulher chamada Marta o recebeu…
Jesus quer ser recebido entre nós. Parece-nos escutar o eco de João que no prólogo do seu Evangelho diz: “Ele, que estava no Pai, veio, mas os seus não o receberam”. O mundo se fecha ao amor e o impede de entrar e fazer parte da nossa vida. Neste mundo fragmentado e embrulhado com o papel da comunicação, numa máscara que esconde o mais duro, nervoso e intransigente individualismo, precisamos buscar alguém que nos acolha. Jesus, provavelmente, estava cansado de caminhar, quem sabe do barulho da multidão que o chamava apresentando-lhe suas necessidades. Então, fatigado por tantas horas de escuta dos outros, sentiu como qualquer ser humano a necessidade de se retirar por breve instante numa casa amiga, longe dos olhares, dos gritos e da súplica do povo necessitado.
Marta, que faz sobressair o seu feminismo amigo e acolhedor, o “recebeu em sua casa”. Receber alguém em casa é dar-lhe não apenas abrigo, mas proporcionar-lhe tudo de que precisa. O hóspede é “sagrado” em todas as culturas e em todos os tempos. Mesmo hoje, preparamo-nos para receber os amigos e proporcionar-lhes o melhor que pudermos. O texto dá a entender que Marta não esperava Jesus, por isso todos os afazeres e o transtorno amoroso que pode causar uma visita amiga, porém inesperada.
Em sua casa…
A casa é o nosso rosto, a nossa fisionomia, manifesta os nossos hábitos e a nossa cultura. Olhando por fora uma casa dá para compreender ou intuir quem são os seus moradores. O estilo da casa, a sua posição, a sua construção, nada disto diz o evangelista Lucas.
Entrar na casa para quê? Para descansar, para estar a sós, para dialogar com os que amamos, para fugir dos olhos indiscretos da multidão. Para rezar, para recuperar a própria intimidade. Jesus mesmo nos recorda que quando rezamos “devemos entrar no nosso quarto, fechar a porta e falar a sós com o Pai”. A casa é símbolo do coração, é entrar em nós mesmos, silenciar para resgatar o que temos desgastado no contato com os outros. Precisamos refinar os nossos ouvidos para escutar melhor. Na casa somos curados das nossas depressões e nos sentimos amados e acolhidos em profundidade.
Tinha uma irmã chamada Maria
Marta não vive sozinha nesta casa. Há uma irmã, Maria. Esta, provavelmente, não exerce poder na casa, é a caçula, faz o que a mais velha, organizadora, lhe diz. Está fascinada pelo Mestre, quer escutá-lo e conversar com Ele. E, neste desejo, esquece tudo. Não quer ter “outro ofício; não tenho nem terei; meu exercício é só amar”, cantara o místico João da Cruz, tentando apresentar-nos as ânsias de quem busca a Deus e esquece tudo o que não é o essencial.
Maria me parece o símbolo dos místicos, dos contemplativos que, esquecendo-se de tudo, quer só escutar; não uma escuta intimista e individualista, mas aquela escuta que transforma a pessoa em fermento de uma nova sociedade. É símbolo da juventude desejosa de contemplar modelos de vida, e Jesus se mostra a ela como modelo pleno da existência.
Lucas coloca em evidência a atitude: sentando-se aos pés… escutava a sua palavra… O evangelista nos apresenta Maria na atitude de discípula. Quando alguém se senta é porque quer parar. E Maria pára para escutar. Somente quem chegou a silenciar a si mesmo e a se esvaziar de todas as preocupações está pronto para escutar e para entrar em sintonia com alguém. Não podemos deixar que o mundo, os afazeres entrem em nós e nos afastem do “centro da nossa alma, que é Deus”.
Em nenhum lugar do Evangelho encontramos dicotomia entre atividade e contemplação. O homem e a mulher completos são aqueles que sabem harmonizar as várias atividades de sua vida. Não é necessário abandonar tudo para ser contemplativos ou místicos, é preciso saber ser senhores de nós mesmos e não dar às coisas mais importância do que elas têm.
Maria escutava… Na Bíblia, a palavra “escutar” nunca está separada da palavra “prática”. Somente quem escuta é capaz de praticar, e a prática não é outra cosia que fruto da escuta. Santa Teresa de Ávila, nas mais altas mansões, escuta as palavras: “Obras quer o Senhor!” Silenciar, rezar, contemplar, não é inatividade ou ociosidade, mas gerar e encontrar motivações sérias para o nosso futuro. Somos chamados, portanto, a silenciar para que sejamos curados de todas as nossas enfermidades. Saiamos da superficialidade, encontremos um lugar para sentar-nos aos pés de Jesus e escutar a sua palavra.
Silentium
No senso comum, o silêncio é sempre sinônimo de respeito ao outro e necessidade de “ausência de barulhos, ruídos” para que a pessoa possa sentir-se bem consigo mesma ou com os outros. O silêncio nos ajuda a “pensar melhor, descansar ou trabalhar com muita concentração para produzir frutos abundantes”.
É necessário entender não tanto o silêncio, mas por que silenciamos. Gostaria, então, de citar algumas frases que podem nos ajudar a compreender por que silenciar e por que não silenciar:
“Quando sufoco a silenciosa voz interior, deixo de ser útil” (Mahatma Gandhi, homem político e espiritual, de oração, de silêncio, que com suas atitudes de não violência instaura um programa de libertação da Índia. Através do dinamismo interior soube transmitir não só para a Índia, mas para o mundo novos valores de convivência, como através da tolerância e do respeito às diferentes religiões).
“O SILÊNCIO é sempre belo, e o homem que cala é mais belo que o homem que fala” (Dostoiewski, grande escritor russo que, com seus romances ricos de humanidade e religiosidade, transformou a mentalidade da Europa e do mundo).
“A maior revelação é o silêncio” (Lao-tse, filósofo contemporâneo de Pitágoras, Buda e Confúcio. Com suas frases curtas, foi fermento de uma maneira toda especial de encarar a vida entre o povo chinês).
“Eu me propus a não tratar mal a ninguém, por pouco que fosse, mas desculpar toda murmuração. Porque tinha muito presente que não havia de querer dizer de outra pessoa o que não queria que dissessem de mim. Tomei isto em extremo para as ocasiões que havia… E as que estavam comigo e me tratavam, persuadi tanto disto, que se tornou cos¬tume. Veio se a entender que onde eu estava tinham as costas protegidas” (Santa Teresa de Jesus).
Abortos
Muitas das nossas palavras e ações são verdadeiros abortos porque não foram geradas no silêncio. Uma das palavras mais duras do Evangelho é esta: “Sereis julgados por todas as palavras ociosas que tiverem pronunciado”. As palavras que saem da nossa boca devem ser palavras que convertam, animem, encorajem ou ofereçam pistas novas, nunca palavras de morte ou de desespero.
A palavra é o espelho onde toda noite devemos nos olhar para ver se fomos durante o dia pessoas de esperança e de vida. Tanto converte a palavra de Deus quanto o seu silêncio, cabe-nos ler os silêncios e as palavras; viajar sobre as palavras e sobre o silêncio para que não sejamos abortivos, mas seres vivos que, com todos os meios à nossa disposição, nos coloquemos a serviço da vida.
O silêncio faz parte da disciplina interior. É fazendo calar o grito dos nossos instintos que aprenderemos a escutar a voz da nossa consciência.

Frei Patrício Sciadini, OCD

Fonte: http://www.comshalom.org/


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