21 de set. de 2013

Carta a Diogneto

“Os cristãos não se distinguem dos demais, nem pela região [em que moram], nem pela língua, nem pelos costumes. Não habitam cidades à parte, não falam uma língua diferente da dos outros, não levam um gênero de vida extraordinário. (...) Relativamente ao vestuário, à alimentação e ao restante estilo de viver, seguem os costumes locais, apresentando um estado de vida [político] admirável e, sem dúvida, paradoxal: moram na própria pátria, mas como peregrinos. Enquanto cidadãos, de tudo participam, porém tudo suportam como estrangeiros. Toda terra estranha é pátria para eles e toda pátria, terra estranha. (...) Se sua vida decorre na terra, a cidadania, contudo, está nos céus. Obedecem às leis estabelecidas, todavia superam-nas pela vida. (...) O que é a alma no corpo são os cristãos no mundo. Encontra-se a alma em todos os membros do corpo, e os cristãos dispersam-se por todas as cidades do mundo. A alma habita o corpo, é verdade, mas não provém dele. Os cristãos residem no mundo, mas não são do mundo” (Capítulos V e VI).
O texto acima é parte de uma carta que um cristão, de nome e origem desconhecidos, escreveu, na segunda metade do século segundo, a um pagão chamado Diogneto - daí o nome como esse texto é conhecido: "Carta a Diogneto". O autor procurou apresentar, em poucas linhas, as principais características dos seguidores de Jesus de Nazaré. O resultado é surpreendente: ele demonstrou ter entendido a mensagem cristã. Compreendeu, por exemplo, que aceitar Jesus Cristo e entrar na Igreja pelo Batismo significa sentir-se obrigado a participar da construção do mundo segundo o plano de Deus, mesmo que numa atuação silenciosa e discreta. O cristão é como o sal: “Vós sois o sal da terra”. Pode-se não perceber sua presença na comida, mas ele a transforma e lhe dá sabor. Assim deve ser a ação do cristão no mundo da política, da economia, das artes, da indústria, da universidade etc. Pode ninguém notá-la; mas, por causa dela, o mundo é melhor, mais justo e fraterno.   
Ao longo de sua história, a Igreja tem mostrado que a fé, longe de levar à alienação, gera compromissos e tem uma dimensão “católica”, isto é, universal. Tomemos um exemplo próximo de nós: o das obras de Irmã Dulce. Nelas, acolhe-se o necessitado, independentemente de sua religião. Nos atendimentos que se dá, não se procura converter ninguém ao catolicismo. Atende-se o necessitado por ser necessitado, isto é, em seu rosto procura-se ver Cristo que sofre. Ser cristão é justamente isso: acolher e amar cada irmão e todos os irmãos; é preocupar-se de modo particular com os que, por não serem ainda discípulos do Mestre da Galileia, não conhecem seus ensinamentos e, assim, não vivem na verdade que liberta.   
Em sua caminhada histórica, a Igreja descobriu que o maior desafio para um seguidor de Jesus não é a incompreensão dos que o cercam, a oposição dos que pensam de modo diferente do seu ou a indiferença dos céticos. O maior desafio é alguém querer viver a vocação cristã sem conhecê-la. Outro desafio: querer ser um discípulo missionário de Jesus Cristo sem aceitar suas exigências, seus apelos e – por que esconder? – sua cruz. A cruz – isto é, o sofrimento – não existe a partir de Jesus Cristo. Está aí, presente na vida de todos, independentemente de a pessoa ter fé ou não. Nosso Salvador nos ensina a carregá-la; nos mostra que ela, levada por amor, torna-se fonte de vida e salvação. Um necessitado não precisa saber que quem o atende tem fé; importante é que se sinta acolhido e amado.
Para prestar um serviço assim aos outros é imprescindível o conhecimento do Evangelho. Vemos, pois, como são atuais as lições daquele nosso irmão na fé lá dos primeiros tempos do cristianismo, do qual, repito, nem sabemos o nome. Ao ensinar a um tal de Diogneto que, apesar de estrangeiros neste mundo, não nos distinguimos dos demais “nem pela língua nem pelos costumes”, mas o que nos distingue é o amor, ele foi direto ao essencial. Por isso sua carta é de uma atualidade impressionante.
Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil

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