A palavra “graça” tem muitos significados. Pode significar “encanto”, quando dizemos: “Ela movimenta-se pela sala com graça”. Pode significar “benevolência”, se dizemos: “É uma graça que espero alcançar na sua bondade”. Pode significar “agradecimento”, como na “ação de graças” das refeições. E ainda se podem acrescentar meia dúzia mais de exemplos em que se usa habitualmente a palavra “graça”.
Na ciência teológica, porém, graça tem um significado muito estrito e definido. Antes de mais nada, designa um dom de Deus. Não qualquer tipo de bom, mas um que é muito especial. A própria vida é um dom divino. Para começar, Deus não tinha obrigação de criar a humanidade e muito menos de criar-nos a você e a mim como indivíduos. E tudo o que acompanha a vida é também dom de Deus. O poder de ver e falar, a saúde, os talentos que possamos ter – cantar, desenhar ou cozinhar um prato -, absolutamente tudo é dom de Deus. Mas são dons chamados naturais. Fazem parte da nossa natureza humana. Existem certas qualidade que têm acompanhar necessariamente uma criatura humana, tal como Deus a designou. E propriamente não se podem chamar graças.
Em teologia, reserva-se a palavra “graça” para descrever os dons a que o homem não tem direito, nem sequer remotamente, dons a que a sua natureza humana não lhe dá acesso. Usa-se para nomear os dons que estão “sobre” a natureza humana. Por isso dizemos que a graça é um dom sobrenatural de Deus.
Mas a definição ainda está incompleta. Há dons de Deus que são sobrenaturais, mas, em sentido estrito, não se podem chamar graças. Por exemplo, uma pessoa com câncer incurável pode curar-se milagrosamente em Lourdes. Neste caso, a saúde dessa pessoa será uma dom sobrenatural, pois foi-lhe restituída por meios que ultrapassam a natureza. Mas, se quisermos falar com precisão, essa cura não é uma graça. Há também outros dons que, sendo sobrenaturais na sua origem, não podem ser qualificados como graças. Por exemplo, a Sagrada Escritura, a Igreja ou os sacramentos são dons sobrenaturais de Deus. Mas este tipo de dons, por sobrenaturais que sejam, atuam fora de nós. Não seria incorreto chamá-los “graças externas”. A palavra “graça”, porém, quando utilizada em sentido simples e por si, refere-se àqueles dons invisíveis que residem e operam na alma. Assim, precisando um pouco mais a nossa definição, diremos que graça é um dom sobrenatural e interior de Deus.
Mas isto levanta-nos imediatamente outra questão. Às vezes, Deus dá a alguns eleitos o poder de predizer o futuro. É um dom sobrenatural e interior. Chamaremos graça ao dom de profecia? Mais ainda, um sacerdote tem o poder de mudar o pão e o vinho no corpo e no sangue de Cristo e de perdoar os pecados. São, certamente, dons sobrenaturais e interiores. Serão graças? A resposta é “não” a ambas as perguntas. Estes poderes, ainda que sejam sobrenaturais e interiores, são dados para beneficio de outros, não daquele que os possui. O poder que tem um sacerdote de oferecer a missa não lhe foi dado para si mesmo, mas para o Corpo Místico de Cristo. Um sacerdote pode estar em pecado mortal, e no entanto a sua missa será válida e obterá graças para os outros. Pode estar em pecado mortal, mas as suas palavras de absolvição perdoarão aos outros os seus pecados. Isto leva-nos a acrescentar outro elemento à nossa definição de graça: é um dom sobrenatural e interior de Deus, concedido para a nossa própria salvação.
Uma última questão: se a graça é um dom de Deus, a que não temos absolutamente nenhum direito, por que nos é concedida? As primeiras criaturas (conhecidas) a quem se concedeu a graça foram os anjos e Adão e Eva. Não nos surpreende que, sendo a bondade infinita, Deus tenha dado a sua graça aos anjos e aos nossos primeiros pais. Não a mereceram, é certo, mas embora não tivessem direito a ela, não eram positivamente indignos desse dom.
Não obstante, depois que Adão e Eva pecaram, eles (e nós, seus descendentes) não só não mereciam a graça, como eram indignos (e com eles, nós) de qualquer dom além dos naturais ordinários, próprios da natureza humana. Como se pôde satisfazer a justiça infinita de Deus, ultrajada pelo pecado original, para que a sua bondade infinita pudesse atuar de novo em benefícios dos homens?
A resposta arredondará a definição de graça. Sabemos que foi Jesus Cristo quem, pela sua vida e morte, prestou à justiça divina a satisfação devida pelos pecados da humanidade. Foi Jesus Cristo quem nos ganhou e mereceu a graça que Adão, com tanta precipitação, havia perdido. E assim completamos a nossa definição dizendo: a graça é um dom de Deus, sobrenatural e interior, que nos é concedido pelos méritos de Jesus Cristo para nossa salvação (cf. n. 2000).
Uma alma, ao nascer, está às escuras e vazia, sobrenaturalmente morte. Não existe nenhum laço de união que a ligue a Deus. Não têm comunicação. Se alcançássemos o uso da razão sem o Batismo e morrêssemos sem cometer um só pecado pessoal (uma hipótese puramente imaginária, virtualmente impossível), não poderíamos ir para o céu. Entraríamos num estado de felicidade natural a que, por falta de outra palavra melhor, chamamos limbo. Mas nunca veríamos a Deus face a face, como Ele é realmente.
A título de esclarecimento, o Catecismo da Igreja Católica recorda: “Todo o homem que, desconhecendo o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, procura a verdade e pratica a vontade de Deus segundo o conhecimento que tem dela, pode salvar-se. Podemos supor que tais pessoas teriam desejado explicitamente o Batismo se tivessem tido conhecimento da sua necessidade” (n. 1260).
Este ponto merece ser repetido: por natureza, nós, seres humanos, não temos direito à visão direta de Deus, que é a felicidade essencial do céu. Nem sequer Adão e Eva, antes da sua queda, tinham direito algum à glória. Com efeito, no estado que poderíamos chamar puramente natural, a alma humana não tem o poder de ver a Deus; simplesmente, não tem capacidade para uma união íntima e pessoal com Deus.
Mas Deus não deixou o homem no seu estado puramente natural. Quando criou Adão, dotou-o de tudo o que é próprio de um ser humano. Mas foi mais longe, e deu também à alma de Adão certa qualidade ou poder que lhe permita viver em íntima (ainda que invisível) união com Ele nesta vida. Esta qualidade especial da alma – este poder de união e intercomunicação com Deus – está acima dos poderes naturais da alma, e por esta razão chamamos à graça uma qualidade sobrenatural da alma, um dom sobrenatural.
O modo que Deus teve de comunicar esta qualidade ou poder especial à alma de Adão foi a sua própria inabitação nela. De uma maneira maravilhosa, que será para nós um mistério até o dia do Juízo, Deus “fixou morada” na alma de Adão. E, assim como o sol comunica luz e calor à atmosfera que o rodeia, Deus comunicou à alma de Adão esta qualidade sobrenatural que é nada menos que a participação, até certo ponto, na própria vida divina. A luz solar não é o sol, mas é o resultado da sua presença. A qualidade sobrenatural de que falamos é distinta de Deus, mas flui d’Ele e é o resultado da sua presença na alma.
Esta qualidade sobrenatural da alma produz ainda um outro efeito. Não só nos torna capazes de alcançar uma íntima união e comunicação com Deus nesta vida, como também prepara a alma para outro dom que Deus lhe acrescentará após a morte: o dom da visão beatifica, o poder de ver Deus face a face, tal como Ele é realmente.
O leitor já terá reconhecido nessa “qualidade sobrenatural da alma” de que falamos acima do dom de Deus a que os teólogos chamam graça santificante; descrevi-a antes de nomeá-la, na esperança de que o nome tivesse mais plena significação quando chegássemos a ele. E no dom acrescentado da visão sobrenatural após a morte aquilo a que os teólogos chamam em latim lumen gloriae, isto é, “luz da glória”. Ora bem, a graça santificante é a preparação necessária, um pré-requisito para esta luz da glória. Como uma lâmpada elétrica se tornaria inútil se não houvesse uma tomada onde liga-la, assim a luz da glória não poderia aplicar-se uma alma que não possuísse a graça santificante.
Mencionei atrás a graça santificante referida a Adão. Deus, no mesmo ato em que o criou, colocou-o acima do simples nível natural, elevou-o a um destino sobrenatural conferindo-lhe a graça santificante. Pelo pecado original, Adão perdeu essa graça para si e para nós. Jesus Cristo, pela sua morte na cruz, transpôs o abismo que separava o homem de Deus. O destino sobrenatural do homem foi restaurado. A graça santificante é comunicada a cada homem individualmente no sacramento do Batismo.
“A graça de Cristo é o dom gratuito que Deus nos faz da sua vida, infundida pelo Espírito Santo em nossa alma, para curá-la do pecado e santifica-la; trata-se da graça santificante ou deificante, recebida no Batismo. É em nós a fonte da obra da santificação” (n. 1999).
Quando nos batizamos, recebemos a graça santificante pela primeira vez. Deus (o Espírito Santo, por “apropriação”) estabelece a sua morada em nós. Com a sua presença, comunica à alma essa qualidade sobrenatural que faz com que – de uma maneira grande e misteriosa – Ele se veja em nós e, consequentemente, nos ame. E já que esta graça santificante nos foi conquistada por Jesus Cristo, por ela estamos unidos a Ele, compartilhamo-la com Cristo – e Deus, por conseguinte, nos vê como vê o seu Filho – e cada um de nós se torna filho de Deus.
Às vezes, a graça santificante é chamada também graça habitual, porque tem por finalidade ser condição habitual, permanente, da alma. Uma vez unidos a Deus pelo Batismo, deveríamos conservar sempre essa união, invisível aqui, visível na glória.
Trecho retirado do livro: A Fé Explicada, Leo Trese.
Via: Cléofas
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